Psicóloga da Educação, educadora menstrual, Angelina Sampaio tornou-se uma das vozes mais activas na promoção da literacia corporal e emocional no país. Com um trabalho que se estende das escolas às famílias, dos livros infantis às palestras, tem construído espaços de diálogo franco sobre menstruação, autoestima, educação e a importância de conhecer o corpo desde cedo.

Nesta entrevista ao Mulheres.ao, fala sobre o seu percurso, o impacto da educação menstrual nas comunidades, a recepção calorosa do livro Luna e a urgência de transformar tabus em conhecimento.

1. Quem é a Angelina para além dos títulos académicos e profissionais? Como se apresenta como mulher, mãe, filha e cidadã?

A.S: Sou uma mulher guiada pelas histórias — as que herdei, as que vivi e as que ainda estou a aprender a transformar. Sou mãe de um jovem de 17 anos, e com ele descobri que a maternidade é um processo contínuo: a cada nova fase nasce um novo filho, e nós renascemos com ele. Ser mãe lembra-me diariamente a importância da coerência e da escuta.

Sou também filha de uma linhagem de mulheres fortes, cujos percursos moldam a forma como vejo o mundo e me reconstruo. E, enquanto cidadã, procuro viver com consciência e propósito, contribuindo para mudanças reais, mesmo quando a vida me confronta com fragilidades que eu pensava não ter.

2. O que a fez dedicar-se à Psicologia da Educação?

A.S: Durante muito tempo temi seguir Psicologia porque ouvi inúmeras vezes que não teria futuro na área. Acabei noutros caminhos, até perceber que estava a fugir do que realmente desejava. Quando finalmente abracei a Psicologia Clínica, descobri que a Psicologia da Educação me desafiava ainda mais — pela imprevisibilidade do trabalho e pela necessidade de compreender contextos muito diversos.

Com o tempo, percebi que muitos comportamentos das crianças não vêm da falta de capacidade, mas da falta de compreensão emocional, social e corporal. A Psicologia da Educação deu-me ferramentas para olhar cada estudante para além dos resultados, como um ser completo. E foi aí que soube que estava exactamente onde devia estar.

3. O que despertou a urgência de trabalhar educação menstrual?

A.S: A urgência apareceu quando percebi que muitas meninas faltavam à escola por causa da menstruação — não apenas pela falta de pensos higiénicos, mas pelo peso da dor, da vergonha e da desinformação. Em 2020, falar de menstruação ainda era quase um acto de rebeldia. Portas fechavam-se, e notei que muitas meninas viviam o ciclo da mesma forma que as suas mães: em silêncio.

Foi aí que entendi, de forma clara, que este não é um tema feminino — é um tema social. O silêncio custa caro: retira oportunidades, autoestima e bem-estar a gerações inteiras. A partir desse momento, não consegui mais olhar para o lado.

4. Como explica literacia corporal e emocional às famílias e às meninas?

A.S: Costumo dizer que literacia corporal é aprender a ler o corpo, e literacia emocional é aprender a ler o que sentimos. Quando estas duas aprendizagens se encontram, a menina desenvolve autonomia, consciência e capacidade de se proteger de tabus, violências e limitações impostas por crenças antigas.

5. Como viver com uma doença oncológica mudou a sua relação com o corpo e o autocuidado?

A.S: Ainda estou a descobrir as respostas. Sinto que renasci num corpo que ainda estou a aprender a habitar. Os tratamentos mudaram tudo — as sensações, as rotinas, até o espelho. A vulnerabilidade deixou de ser conceito; tornou-se condição diária.

Aprendi a reconhecer limites e a agradecer pelo corpo que, mesmo cansado, continua a permitir-me viver. Hoje, autocuidado não é um conjunto de práticas: é uma relação honesta comigo mesma. Escutar o corpo, pedir ajuda, descansar, aceitar que algumas coisas já não serão como antes — e tudo bem. A resiliência, para mim, passou a ser isto: continuar, mas com verdade.

6. Que impacto o diagnóstico teve na sua missão como educadora menstrual?

A.S: O impacto foi profundo. Descobrir que não voltaria a menstruar e entrar directamente na menopausa foi desestabilizador. Mas, depois do susto, percebi que este processo me deu uma compreensão ainda mais humana do corpo feminino.

Aprendi, na pele, sobre hormonas, mudanças abruptas, limites e adaptações. E isso reforçou a minha missão: literacia corporal não é só para meninas, é para todas nós. A saúde da mulher não pode continuar a ser tratada como secundária. O diagnóstico ampliou a minha voz e o meu compromisso.

7. Como descreve a experiência de partilhar a sua história no Elas à Mesa – Outubro Rosa?

A.S: Foi um momento muito especial. Não falei apenas sobre o que vivi, mas sobre aspectos que quase nunca entram na conversa sobre cancro — desde produtos que usamos sem questionar, até hábitos normalizados que representam riscos reais. Senti que aquele espaço abriu portas para conversas honestas sobre prevenção, cuidado e apoio emocional. Foi uma partilha que criou pontes entre mulheres.

8. O que ainda falta compreender sobre o impacto emocional do cancro nas famílias?

A.S: Falta compreender que o cancro nunca atinge apenas a pessoa doente, afecta uma rede inteira. Há cansaço, medo, silêncio e tentativas de força que muitas vezes escondem dor. Falta espaço para emoções difíceis, como a raiva e a exaustão.

E falta aceitar que não existe um manual universal. Cada família encontra o seu caminho. Às vezes, o melhor apoio é simplesmente estar presente, mesmo quando as palavras não chegam.

9. O que representa o livro Luna na sua vida pessoal e profissional?

A.S: A Luna é um sonho que ganhou forma. É a minha forma de conversar com meninas de todo o país, com delicadeza e firmeza. É a semente de um futuro onde a menstruação não é tabu, onde as meninas crescem confiantes no seu corpo e no seu ritmo. A Luna é um gesto de amor e um compromisso com a próxima geração.

10. O que mais a marcou no contacto directo com as meninas e famílias durante a sessão de autógrafos?

A.S: A curiosidade das meninas foi emocionante. Elas perguntaram, partilharam, quiseram saber mais. E a presença dos pais tocou-me profundamente — ver homens a acompanhar as filhas, a valorizar o conhecimento e a apoiar este processo, foi inspirador. Senti ali um futuro possível.

11. Que mensagens essenciais quis transmitir através da Luna?

A.S: Que crescer não é motivo de vergonha. Que cada menina tem o seu tempo. Que o corpo é um lugar seguro quando é compreendido com carinho e verdade. E que elas podem ser tudo o que desejarem.

12. Que mitos sobre menstruação são mais urgentes de desconstruir em Angola?

A.S: A ideia de que a menstruação é suja. A crença de que, ao menstruar, a menina já é “mulher”. O mito de que não pode praticar desporto. E a visão punitiva do corpo feminino, ainda presente em várias comunidades.

13. Quais são os maiores desafios da dignidade menstrual no país?

A.S: O maior desafio é romper o silêncio — porque é nele que vivem o tabu, o medo e a desinformação. Precisamos envolver escolas, famílias, instituições e comunidades. Garantir acesso a produtos menstruais seguros é essencial, mas falar abertamente sobre menstruação é igualmente urgente.

14. O que significa, para si, “conhecer o corpo como acto de liberdade”?

A.S: Significa saber que ninguém pode definir por nós o que devemos sentir ou viver. Quando uma menina conhece o seu corpo e o seu ciclo, o mundo deixa de manipulá-la com facilidade. Conhecer o corpo é abrir portas para escolher, participar, sonhar — sem limites impostos.

15. Que conselhos dá a mães e pais que querem falar de menstruação com as filhas?

A.S: Comecem cedo, antes da primeira menstruação. Falem com naturalidade, sem dramatização. Criem espaço para perguntas e respostas honestas. E transmitam informação correcta, sem mitos. Informação é cuidado.

16. Que impacto acredita que a educação menstrual terá nas próximas gerações?

A.S: Teremos mulheres mais conscientes, confiantes e preparadas para exigir dignidade e saúde. E rapazes mais empáticos e informados. Quando educamos uma geração inteira sobre o corpo, todos ganham.

17. Como concilia activismo, trabalho, estudos e vida pessoal? Há rituais que não abdica?

A.S: Organizo o meu dia por prioridades, embora nem sempre corra como planeado. Um ritual que preservo é o silêncio — parar, respirar e reorganizar-me antes de voltar ao mundo. É nesse espaço que encontro clareza.

18. Que mensagem deixa às meninas e mulheres que ainda têm medo ou vergonha do próprio corpo?

A.S: O corpo é a vossa primeira casa. Merece cuidado, não castigo. Merece escuta, não silêncio. Merece amor — sobretudo o vosso.

 

Deixe o seu comentário